Por: Eduardo Cabette
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social,
Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito
Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e
Processual Penal Especial na graduação e na Pós – graduação do Unisal e
Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do
Programa de Mestrado do Unisal.
Recentemente foi divulgada na internet a
notícia de que a legislação francesa, na prática, teria legalizado ou
liberado a pedofilia, ao não permitir o estabelecimento de idade mínima
para que alguém possa manter relação sexual com uma criança ou
adolescente.
Um dos vídeos sobre o tema foi elaborado e exposto
por Bernardo P. Küster, onde o autor informa sobre o estabelecimento
expresso na nova legislação francesa de que não pode haver uma idade
mínima para que uma pessoa possa praticar atos libidinosos de qualquer
espécie com um (a) jovem. [2]
Logo em seguida, notícias como essa acima foram tachadas como “fake news” ou notícias falsas por veículos de aferição.
Afirma-se que a França não tinha na legislação anterior uma idade
mínima para a liberação de atos sexuais com menores, embora houvesse o
reconhecimento da idade de 15 anos na prática. Então, alega-se que o que
a nova lei faz é “somente” estabelecer explicitamente que não existirá a
possibilidade de um marco de idade mínimo para considerar “ipso facto”
configurado o abuso sexual de menores, tudo dependendo da análise da
inexistência de violência, grave ameaça, fraude, ou mesmo falta de
discernimento do menor no momento do consentimento. Este seria o teor da
chamada “Lei Schiappa” (Lei 703/18, de 03.08.2018). [3]
Ocorre que no corpo dos próprios desmentidos há contradição. Em
primeiro lugar, há a atribuição do rótulo de “fake news”, de forma
arbitrária, a uma interpretação, que é subjetiva, dos efeitos práticos
de uma medida legislativa que simplesmente proíbe a existência, seja
legalmente, seja por jurisprudência, de um marco mínimo para atos
sexuais entre adultos e crianças. Em segundo lugar, num dos próprios
desmentidos, há a afirmação de que a legislação francesa nunca previu
uma idade mínima, ao mesmo tempo em que se aponta o artigo 227 – 25 do Código Penal Francês, estabelecendo como “atteinte sexuelle” qualquer prática sexual com menores de 15 anos. [4]
E essa afirmação é a verdadeira. Em pesquisa na própria net é possível
encontrar rapidamente a legislação penal francesa traduzida para o
espanhol, onde se verifica claramente o estabelecimento, em lei, de uma
idade mínima, senão vejamos a transcrição:
“Artículo 227-25 CÓDIGO PENAL
(Ley nº 98-468 de 17 de junio de 1998 art 18 Diário Oficial de 18 de
junio de 1998) El hecho de cometer sin violencia, coacción, amenaza ni
sorpresa un atentado sexual contra un menor de quince años por parte de una persona mayor de edad será castigado con cinco años de prisión y multa de 75.000 euros” (grifo nosso). [5]
A verdade é que o Código Penal
Francês já previu sim uma idade mínima para atos sexuais com menores
sem violência, fraude ou grave ameaça, a exemplo do que ocorre no Brasil
com o chamado “Estupro de Vulnerável” (artigo 217 – A, CP).
Ora, nesse passo, com o devido respeito, parece que os veículos de
aferição é que estão propagando “fake news”, seja na medida em que
apresentam textos absolutamente contraditórios e autofágicos, tornando a
informação duvidosa para o leitor, seja porque apontam como “fake news”
a interpretação subjetiva ou a avaliação ou prognóstico dos efeitos de
uma legislação, coisa passível de livre e aberta discussão, não sendo
possível simplesmente calar tal discurso com o rótulo de “fake news”,
num chamado “efeito silenciador do discurso”, nada democrático, conforme
descreve Fiss. [6]
Seja finalmente porque veiculam informação efetivamente falsa,
objetivamente falsa, não se tratando de uma discussão sobre os efeitos
de uma alteração legislativa.
O sentido da justificada reação
de revolta e preocupação contida em manifestações como a de Bernardo P.
Küster, decorre do fato de que a legislação, ao remover um limite
objetivo de idade com uma simples e reta proibição de atos sexuais,
impondo aos maiores uma relação de responsabilidade e dever para com os
menores, passa a equiparar as responsabilidades entre adultos e crianças
ou adolescentes na prática do ato sexual, o que é, para além de imoral,
uma violação óbvia ao Princípio da Legalidade em seu aspecto material
(desiguais estão sendo tratados igualmente). A relação entre um adulto e
uma criança ou adolescente não é de igualdade, de reciprocidade, mas de
responsabilidade por parte do adulto. Cabe ao adulto conduzir essa
relação com exercício de responsabilidade e dever de cuidado para com o
menor. Nunca, jamais pode haver uma situação de equiparação moral, legal
e de poder entre essas pessoas no que tange às práticas sexuais, a não
ser realmente após certa idade que pode variar de acordo com os costumes
e grau de informação e maturidade dos menores nos diversos países. A
eliminação de um marco etário corresponde sim, perigosamente, a um
prognóstico de liberalização das práticas sexuais, envolvendo adultos e
menores. A questão não é somente moral, mas diz respeito à provável
exploração sexual dos mais vulneráveis nesse relacionamento, tudo isso
sob o pálio da lei e das decisões judiciais vindouras.
Pode
surgir o argumento de que se está exagerando na temeridade dessas
consequências. Mas, um pequeno exemplo do que pode ocorrer com a
manipulação da legislação num país como o Brasil, que estabelece
legalmente um marco etário para a prática de relações sexuais com
menores, será suficiente.
Como se sabe, o Código Penal
Brasileiro simplesmente proíbe terminantemente que adultos mantenham,
ainda que consensualmente, atos libidinosos de qualquer espécie com
menores de 14 anos. Isso, como já dito acima, configura o crime de
“Estupro de Vulnerável”, previsto no artigo 217 – A, CP. A redação do tipo penal confere aos intérpretes total segurança jurídica:
“Artigo 217 – A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”.
Pois bem, mesmo com toda essa clareza solar da legislação pátria, há
juristas que defendem que o marco dos 14 anos não é absoluto, mas
relativo, merecendo apreciação em cada caso concreto, de acordo, por
exemplo, com o fato de já haver o menor praticado atos sexuais
anteriormente com terceiros. Ou seja, desconsidera-se a corrupção sexual
que se reforça a cada prática induzida por um adulto, bem como se
desconsidera a letra clara e evidente da lei.
No sentido acima, por exemplo, encontram-se João José Leal e Rodrigo José Leal:
“a
nosso ver a presunção de vulnerabilidade do menor de 14 anos pode,
também, ser afastada diante da prova inequívoca de que a vítima de
estupro possui experiência da prática sexual e apresenta comportamento
incompatível com a regra de proteção jurídica pré-constituída”. [7]
Contudo, diante da clareza da legislação brasileira, não haveria perigo
de que nosso Judiciário se arvorasse a seguir tais entendimentos,
permitindo situações monstruosas de evidentes abusos sexuais de menores
plenamente vulneráveis, não é verdade? Não!
Pois bem, fato é que
em caso claro e evidente, versando sobre o estupro (na época “atentado
violento ao pudor”) de uma criança de 5 (cinco) anos, em que o indivíduo
procedeu a manipulações de seu órgão digital e sexo oral, o E. Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, afirmou a inexistência de crime porque
a criança teria “consentido livremente” (sic) no ato sexual sobredito.
Consta desse julgado espúrio que “a vítima foi de espontânea vontade ao
encontro do recorrente, atraída pelos dizeres do acusado”. E mais:
“vamos, por assim dizer” que o ato se deu “com o consentimento da
criança”, a qual “foi seduzida e não violentada” (sic). Por felicidade
essa decisão absurda foi reformada em Recurso Especial 714979/RS pelo
Superior Tribunal de Justiça. [8]
Uma decisão como esta é certamente sintoma daquilo que se pode, com
absoluta razão, chamar de “esquizofrenia intelectual”, caracterizada
pelo “amor deliberado à unidade na fantasia e a rejeição da unidade na
realidade”. [9]
Ora, se algo desse jaez é possível de ocorrer numa corte de segundo
grau de jurisdição, é de se concluir que a insanidade é algo que se pode
espraiar por qualquer canto e nas mais variadas circunstâncias,
inclusive quando se tem de julgar a capacidade e a vulnerabilidade
vitimal de crianças de tenra idade e, pior ainda, de adolescentes pré -
púberes.
E a questão chegou a ser tão intensamente debatida na
prática que obrigou o STJ a expedir a Súmula 593, em 25.10.2017, com os
seguintes dizeres, que visam conter a sanha de relativização da idade –
limite legalmente imposta:
“O crime de estupro de vulnerável se
configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor
de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a
prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de
relacionamento amoroso com o agente”.
Ora, é mais do que
evidente que a preocupação externada em vídeos como o veiculado por
Bernardo P. Küster não constitui “fake news” e nem é fruto de
irrazoabilidade. A preocupação de Küster e muitos outros está ancorada
na realidade dos fatos, tanto que o autor consta no título de seu vídeo
que a pedofilia foi liberada “na prática”, não necessariamente por um
decreto legal. O efeito prático da eliminação legal do marco etário é
altamente perigoso no que tange a uma liberalização das práticas sexuais
com menores, mesmo em tenra idade, tudo a depender da interpretação,
nem sempre razoável ou mesmo sã, dos encarregados de prover à prestação
jurisdicional. O exemplo acima, do Brasil, onde, mesmo com o marco legal
evidente, há uma decisão doentia, acatando a capacidade de deliberação
para atos sexuais de um menor de 5 (cinco) anos, é paradigmático.
O contorno da legislação para que a prática pedófila seja legitimada
por via de seguidas decisões judiciais ditas “liberais” ou
“progressistas”, é facilitado por demais com a eliminação do marco legal
mínimo. Verificou-se que mesmo havendo esse marco, há meios para tentar
sua burla.
Abre-se ainda mais o caminho para um ativismo judicial deletério capaz de promover
a pedofilia, o que é ainda mais grave do que praticá-la. Isso porque a
prática se dá com uma pessoa, em um ato ou até mesmo com várias em
vários atos, mas não chega a se constituir em uma ação difusa e
legitimadora do abuso de menores, o qual, aliás, passaria a ser
“resignificado”, pela sua promoção judicial em decisões
reiteradas, não mais como “abuso”, mas como prática natural e até um
direito inerente à dignidade sexual das pessoas! Fato é que a medida
legislativa francesa simplesmente transforma o que era uma abominação
evidente, um absurdo indiscutível, em uma questão que pode ser posta em
debate, analisada de acordo com incertas circunstâncias e argumentos os
mais variados. Uma criança de cinco anos pode consentir em atos sexuais
com um adulto de 35 anos? Ora, isso seria indiscutível com um marco
etário (pelo menos seria possível conter a sanha relativista, a exemplo
da Súmula 593, STJ no Brasil), mas agora passa a ser tema de discussão.
Uma discussão asséptica, distanciada, mantida nas salas dos tribunais,
nos gabinetes, bem longe do fedor e da podridão moral em que estarão
jogadas as crianças e adolescentes na ruas e casas (especialmente as
mais pobres), sob o jugo de exploradores que agora podem contar com a
“compreensão” estatal de suas “cândidas” condutas.
NOTAS:
[1] A palavra “pedofilia” será utilizada neste texto para explicitar o abuso sexual de menores por maiores. Sabe-se perfeitamente que se trata de um transtorno sexual na linguagem psiquiátrica, e que, na legislação brasileira inexiste tipo penal com tal denominação, mas sim, por exemplo, os crimes de “estupro de vulnerável”, de “Favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável”, afora crimes previstos no Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8069/90), como v.g. artigos 240 a 241 – D.
[2] KÜSTER, Bernardo P. França legaliza pedofilia (na prática). Disponível em www.youtube.com , acesso em 27.08.2018.
[3] LOPES, Gilmar. A França aprovou uma lei que liberou a pedofilia? Disponível em www.e-farsas.com , acesso em 27.08.2018. No mesmo sentido: MATSUKI, Edgard. França aprova lei que legaliza pedofilia e sexo consentido com crianças #boato. Disponível em www.boatos.org , acesso em 27.08.2018.
[4] LOPES, Gilmar. Op. cit.
[5] Cf. CÓDIGO Penal. Disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/content/location/1752 , acesso em 27.08.2018.
[6] FISS, Owen M. A Ironia da Liberdade de Expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 58.
[7] LEAL, João José, LEAL, Rodrigo José. Novo tipo penal de estupro contra pessoa vulnerável. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 27.08.2018.
[8] PESSI, Diego, SOUZA, Leonardo Giardin de. Bandidolatria e Democídio. São Luís: Resistência Cultural, 2017, p. 39 – 41.
[9] RUSHDOONY, Rousas John. Esquizofrenia Intelectual. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Monergismo, 2016, p. 144.
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REFERÊNCIAS
CÓDIGO Penal. Disponível em https://www.legifrance.gouv.fr/content/location/1752 , acesso em 27.08.2018.
FISS, Owen M. A Ironia da Liberdade de Expressão. Trad. Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
KÜSTER, Bernardo P. França legaliza pedofilia (na prática). Disponível em www.youtube.com , acesso em 27.08.2018.
LEAL, João José, LEAL, Rodrigo José. Novo tipo penal de estupro contra pessoa vulnerável. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 27.08.2018.
LOPES, Gilmar. A França aprovou uma lei que liberou a pedofilia? Disponível em www.e-farsas.com , acesso em 27.08.2018.
MATSUKI, Edgard. França aprova lei que legaliza pedofilia e sexo consentido com crianças #boato. Disponível em www.boatos.org , acesso em 27.08.2018.
PESSI, Diego, SOUZA, Leonardo Giardin de. Bandidolatria e Democídio. São Luís: Resistência Cultural, 2017.
RUSHDOONY, Rousas John. Esquizofrenia Intelectual. Trad. Fabrício Tavares de Moraes. Brasília: Monergismo, 2016.
2 comentários:
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