Nem
tudo se resume à minoria na rua. Há outros assuntos em pauta no país. O
blog recebeu ontem quase 300 mil visitas. É provável que alguns novos
leitores acabem tomando gosto pela página. Nem todos conhecem os debates
travados aqui. Pois bem: nos jornais desta quarta, vocês encontrarão o
que já está nos sites e portais. Algo mais ou menos assim: “Comissão de
Feliciano aprova projeto da cura gay”. É mentira dupla! Em primeiro
lugar, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara não pertence
ao deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Em segundo lugar, não existe
projeto que prevê a cura gay. Isso é uma fantasia do jornalismo
militante. Semelhante àquela que sustenta que o Estatuto do Nascituro é
“Bolsa Estupro”. Tenho 51 anos. Quando eu tinha 20 e poucos, 30 e poucos
e, acreditem, até 40 e poucos, era proibido fazer militância política
em redação. Cada um que tivesse as suas convicções, mas o compromisso
tinha de ser com o fato, segundo valores, a saber: defesa da democracia,
do estado de direito, da economia de mercado. Era proibido, por
exemplo, mentir , simplificar ou trapacear em nome do bem da humanidade.
Jornalista reporta o que vê — e alguns opinam. Mas sem inventar o que
não existe num caso ou noutro.
Ao fato
mais recente: a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
aprovou um Projeto de Decreto Legislativo, do deputado João Campos
(PSDB-GO), que susta dois trechos de uma resolução do Conselho Federal
de Psicologia. O texto ainda tem de passar pelas comissões de Seguridade
Social e de Constituição e Justiça. Se alguém não conhece detalhes do
debate — geralmente ignorados porque fica mais fácil fazer proselitismo
onde há ignorância, especialmente a bem intencionada — explico tudo
abaixo, nos mínimos detalhes, conforme fiz, por exemplo, no dia 2 de maio. Vamos ver.
O Projeto
de Decreto Legislativo 234/11 torna sem efeito o trecho do Artigo 3º e
todo o Artigo 4º da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia.
Então vamos aos documentos. A íntegra do Projeto de Decreto Legislativo está aqui, com a justificativa. Reproduzo a parte propositiva em azul.
Art. 1º
Este Decreto Legislativo susta o parágrafo único do Art. 3º e o Art.
4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de
Março de 1999.
Art. 2º Fica sustada a
aplicação do Parágrafo único do Art. 3º e o Art. 4º, da Resolução do
Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que
estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da
orientação sexual.
Art. 3º Este decreto legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
Então é
preciso fazer o que virou raridade nas redações quando os lobbies “do
bem” ditam a pauta; saber, afinal, que diabo dizem os trechos que seriam
sustados.
“Art. 3° – os psicólogos
não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva
tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.”
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° – Os psicólogos
não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos
meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos
sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de
qualquer desordem psíquica.
Comento
Atenção! A proposta de Decreto Legislativo não toca no caput do Artigo 3º. Ele seria mantido intocado. Como deixa claro o projeto do deputado, seriam suprimidos apenas o Parágrafo Único do Artigo 3º e o Artigo 4º. Como
se nota, ao suprimir esses dois trechos da Resolução 1/99, o Projeto de
Decreto Legislativo não passa a tratar a homossexualidade como uma
doença. É mentira! Também não autoriza a “cura gay”. É outra mentira!
São distorções absurdas!
Fato, não militância
Procederei a algumas considerações
prévias, até que chegue ao cerne da questão. Avalio que a
homossexualidade não tem cura pela simples razão de que não a considero
uma doença. E nisso concordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde) e
com o Conselho Federal de Psicologia. Assim, não acredito em terapias
que possam converter héteros em gays ou gays em héteros (não se tem
notícia de que alguém tenha buscado tal conversão). Mais: sexualidade
não é uma opção — se fosse, a esmagadora maioria escolheria o caminho da
maior aceitação social, e, nessa hipótese, as escolhas poderiam até ir
mudando ao longo do tempo, à medida que determinadas práticas passassem a
ser mais aceitas ou menos.
Há quem só
goste de um brinquedo; há quem só goste do outro; e há quem goste dos
dois. Essa minha opinião não é nova — o arquivo está aí. Os espadachins
da reputação alheia, como escreveu Balzac, fazem questão de ignorá-la
porque gostam de inventar inimigos imaginários para posar de mártires.
Muito bem. Até aqui, não haveria por que os gays — ou o que chamo
“sindicalismo gay” — estrilar. Mas é evidente que não pensamos a mesma
coisa. Entre outras divergências, está o tal PLC 122 que criminaliza a
chamada “homofobia”. Trata-se de um delírio autoritário. Já escrevi
muito a respeito e não entrarei em detalhes agora para não desviar o
foco.
Vamos lá. Desde 22 de março de 1999, está em vigência a tal Resolução 1 (íntegra aqui),
que cria óbices à atuação de psicólogos na relação com pacientes gays.
Traz uma porção de “considerandos”, com os quais concordo (em azul), e
depois as resoluções propriamente. Listo os ditos-cujos:
CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde;
CONSIDERANDO que na prática profissional,
independentemente da área em que esteja atuando, o psicólogo é
frequentemente interpelado por questões ligadas à sexualidade;
CONSIDERANDO que a forma como cada um
vive sua sexualidade faz parte da identidade do sujeito, a qual deve ser
compreendida na sua totalidade;
CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão;
CONSIDERANDO que há, na sociedade, uma
inquietação em torno de práticas sexuais desviantes da norma
estabelecida sócio-culturalmente;
CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve
contribuir com seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões
da sexualidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações
Aí vem o conteúdo da resolução. O caput do Artigo 3º, com o qual ninguém mexe, é correto. Reproduzo:
“Art. 3° – os psicólogos não
exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos
ou práticas homoeróticas nem adotarão ação coercitiva tendente a
orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.”
Está claro, então, que os psicólogos não
atuarão para favorecer a patologização da homossexualidade nem efetuarão
tratamentos coercitivos. E a parte que cairia? Pois é…Transcrevo outra
vez (em vermelho e em destaque):
Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art.
4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de
pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a
reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais
como portadores de qualquer desordem psíquica.
Têm de cair mesmo!
Qual é o
principal problema desses óbices? Cria-se um “padrão” não definido na
relação entre o psicólogo e a homossexualidade. Esses dois trechos são
tão estupidamente subjetivos que se torna possível enquadrar um
profissional — e puni-lo — com base no simples achismo, na mera opinião
de um eventual adversário. Abrem-se as portas para a caça às bruxas.
Digam-me cá: um psicólogo que resolvesse, sei lá, recomendar a
abstinência sexual a um compulsivo (homo ou hétero) como forma de
livrá-lo da infelicidade — já que as compulsões, segundo sei, tornam
infelizes as pessoas —, poderia ou não ser enquadrado nesse texto? Um
adversário intelectual não poderia acusá-lo de estar propondo “a cura”?
Podemos ir mais longe: não se conhecem — ou o Conselho Federal já
descobriu e não contou pra ninguém? — as causas da homossexualidade. Se
um profissional chega a uma determinada terapia que homossexuais,
voluntariamente, queiram experimentar, será o conselho a impedir? Com
base em que evidência científica?
Há uma
diferença entre “verdade” e “consenso da maioria influente”. Ademais,
parece-me evidente que proibir um profissional de emitir uma opinião
valorativa constitui uma óbvia infração constitucional. Questões ligadas
a comportamento não são um teorema de Pitágoras. Quem é que tem o “a²=
b²+c²” da homossexualidade? A resolução é obviamente autoritária e
própria de um tempo em que se impõe a censura em nome do bem.
Ora,
imaginem se um conselho de “físicos” ousaria impedir os cientistas de
tentar contestar a relatividade. O que vai ali não é postura científica,
mas ideologia. Se conceitos com sólida reputação de verdade, testados
empiricamente, podem ser submetidos a um teste de estresse intelectual,
por que não considerações que dizem respeito a valores humanos? Tenham
paciência! O fato de eu não endossar determinadas hipóteses ou
especulações não me dá o direito de proibir quem queira fazê-lo.
Fiz uma
pesquisa antes de escrever esse texto. Não encontrei evidências de
resolução parecida em nenhum lugar do mundo. O governo da Califórnia,
nos EUA, proibiu a terapia forçada de “cura” da homossexualidade em
adolescentes. É coisa muito diferente do que fez o conselho no Brasil.
Países que prezam a liberdade de expressão e que não querem usar o
discurso da liberdade para solapar a própria liberdade não se dão a
desfrutes dessa natureza.
Então
vamos lá. Eu não estou defendendo terapias de cura da homossexualidade.
Eu não acredito que haja cura para o que não vejo como doença. Também
não acho que estamos no universo das escolhas. Dito isso, parece-me uma
suma arrogância que um conselho profissional interfira nessa medida na
atividade clínica dos profissionais e, atenção!, dos pacientes também!
Assim, no mérito, não vejo nada de despropositado na proposta do
deputado João Campos. Ao contrário: acho que ela derruba o que há de
obviamente autoritário e, entendo, inconstitucional na resolução porque
decidiu invadir também o território da liberdade de expressão, garantido
pelo Artigo V da Constituição.
É preciso saber ler.
Proponho
aqui um exercício aos meus colegas jornalistas. Imaginem um Conselho
Federal de Jornalismo que emitisse a seguinte resolução, com poder para
cassar o seu registro profissional:
“Os jornalistas não colaborarão com eventos e serviços que proponham qualquer forma de discriminação social”.
“Os
jornalistas não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos
públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os
preconceitos contra pobres, negros, homossexuais, índios, mulheres,
portadores de necessidades especiais, idosos, movimentos sociais e
trabalhadores”
O idiota
profissional diria: “Ah, está muito bem para mim! Eu não faria nada
disso mesmo!”. Não, bobalhão, está tudo errado! Você se entregaria a uma
“corte” de juízes que definiria, por sua própria conta, o que seria e o
que não seria preconceito. Entendeu ou preciso pegar na mãozinha para
ajudar a fazer o desenho? O problema daquele Parágrafo Único do Artigo
3º e do Artigo 4º é o subjetivismo. Ninguém pode ser obrigado, não numa
democracia, a se submeter a um tribunal que pode dar a sentença máxima
com base nos… próprios preconceitos.
Nem nos
seus delírios mais autoritários ocorreria a um conselho profissional nos
EUA, por exemplo, interferir dessa maneira na relação do psicólogo com o
seu paciente. Uma coisa é afirmar, e está correto, que a
homossexualidade não é doença; outra, distinta, é querer impedir que o
profissional e quem o procura estabeleçam uma relação terapêutica que
pode, sei lá, disciplinar um comportamento sexual sem que isso seja,
necessariamente, uma “cura”.
Os tais
trechos da resolução, entendo, são mesmo autoritários e
inconstitucionais. E têm de cair. E o que parece, isto sim, não ter cura
é a vocação de amplos setores da imprensa para a distorção. Cada vez
mais, a notícia se transforma num instrumento para privilegiar “os bons”
e satanizar “os maus”. Isso é militância política, não jornalismo.
2 comentários:
A paz de Cristo amado,gostaria de indicar meu blog:willian bugiga e o site:www.convertidos.com.br
a paz
O Brasil é a única nação no mundo em que um psicólogo não pode tentar reverter o quadro homossexual em alguém que não deseja a homossexualidade. Da mesma forma que um heterossexual vai a um psicólogo para tratar a própria vida sexual, um homo deveria ter este direito, garantido em todas as democracias do mundo, menos neste circo... Ops! Quis dizer, neste país.
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