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quinta-feira, 29 de outubro de 2015

498 DA REFORMA PROTESTANTE

 Por Carlos Caldas




Falta pouco, muito pouco, apenas dois anos, para a celebração do aniversário de meio milênio do protestantismo! Em outubro de 2017 lembraremos os quinhentos anos do movimento reformador, que, sem exagero, mudou a face da Alemanha, onde começou, da Europa e até mesmo de todo o mundo. Eu me lembro muito bem de 1983, o ano do quinto centenário do nascimento de Martinho Lutero, e espero, mercê de Deus, estar aqui em 2017. Todavia, antes de prosseguir, faço uma observação, por amor à precisão histórica: há que se registrar que o nome de família do futuro reformador era Luder, mas quando ele seguiu a carreira acadêmica, trocou-o para Luther – “Lutero” – por considerar a nova forma mais respeitável academicamente.

A Federação Luterana Mundial e várias outras entidades ecumênicas e confessionais já há alguns anos planejam a grande comemoração dos 500 anos da Reforma. Decerto haverá daqui a dois anos excursões provenientes de todos os cantos do globo para percorrer o Lutherweg, “o caminho de Lutero”, não apenas na Turíngia, onde ele nasceu e passou a maior parte de sua vida, mas em toda parte do território alemão que de um modo ou de outro tenha algo a ver com a trajetória política, intelectual, econômica, social e espiritual dos começos da Reforma Protestante.

Em 2006 tive a oportunidade de conhecer Worms, onde em 1521 acontecera a Wormser Reichstag, a “Dieta de Worms”, convocada pelo próprio Imperador Carlos V do Sacro Império Romano Germânico. Um dos temas tratados na reunião foi a convocação ao monge agostiniano Martim (Martinho) Lutero a que se retratasse de suas 95 teses, publicadas quatro anos antes. Lutero foi advertido por seus amigos a não ir, pois corria risco de vida. Sua resposta ficou famosa: “vou a Worms nem que lá haja tantos demônios como telhas nos telhados das casas da cidade”. Lá, ao ser desafiado a se retratar, Lutero respondeu “Hier stehe ich. Ich kann nicht anders”, algo mais ou menos como “Aqui estou. Não posso fazer nada diferente”. Em outras palavras, “não vou me retratar”.

E eis que agora em agosto de 2015, eu tive a oportunidade de apresentar um trabalho na mesa “Cristianismo e sociedade” da assembleia quinquenal da Associação Internacional de História das Religiões (AIHR), em Erfurt, cidade muito importante na trajetória de Lutero. O congresso aconteceu na universidade da cidade, que tem Lutero como seu mais famoso ex-aluno! A região da Turíngia, onde está Erfurt (que nos anos da Guerra Fria era Alemanha Oriental) foi muito importante na vida de Lutero. Começando pelo fato que ele nasceu em Eisleben, distante cerca de 90 quilômetros de Erfurt. Lutero permaneceu no “Agostinerkloster”, o Mosteiro Agostiniano em Erfurt de 1505 a 1511. Lá seu mestre espiritual foi Staupitz, a respeito de quem Lutero disse que se não fosse por ele (Staupitz), sua alma arderia para sempre no inferno. Foi por influência de Staupitz que, entre outras coisas, Lutero foi encaminhado para os estudos bíblicos. Mas antes, em 1498, Hans e Margarethe, seus pais, o enviaram para Eisenach, na mesma Turíngia, para estudar na escola da Igreja de São Jorge, em preparação para seus futuros estudos universitários.
Lutero depois foi para Wittenberg, não muito distante de Erfurt, lecionar na então recente (1502) universidade criada pelo Príncipe Eleitor Friedrich der Weise, “Frederico, o Sábio”. Foi em Wittenberg que no dia 31 de outubro de 1517, véspera do Dia de Todos os Santos, Lutero divulgou suas famosas 95 Teses contra a venda de indulgências. O texto das 95 Teses foi enviado em forma de carta ao Arcebispo Alberto de Magdburgo e Mentz. Uma leitura das Teses revela um Lutero ousado e polemista, “sem papas na língua” como se diz. Mas percebem-se já ênfases que marcariam a construção teológica protestante clássica. Exemplo eloquente disto é a Tese 62: “O verdadeiro tesouro da Igreja é o Santo Evangelho da glória e da graça de Deus”.

Ao voltar de Worms para Wittenberg, Lutero simplesmente desapareceu. Circulou-se na época o boato de que seus inimigos usaram de violência física contra ele por não poderem rebater seus argumentos. O sumiço de Lutero se deu por obra e graça de seu protetor, o já citado Príncipe Eleitor Frederico da Saxônia, que mostrou que era realmente sábio. Lutero fora “sequestrado” e levado em absoluto segredo para o Castelo de Wartburg, nas imediações de Eisenach. O Wartbug já existia há séculos na época de Lutero. Lá ele ficou oculto por cerca de dez meses. Neste tempo, traduziu o Novo Testamento do grego para o alemão. Os participantes do congresso da AIHR tiveram oportunidade de visitar Eisenach e o Wartburg. O Wartburg é bastante grande, e o cubículo que serviu de escritório para Lutero quando ele traduziu o Novo Testamento fica na parte superior do castelo. Foi uma emoção imensa e intensa estar em um lugar tão importante para a história do protestantismo, a respeito do qual eu já tinha lido tantas e tantas vezes, e que nunca pensei que um dia conseguiria visitar!

A comemoração do aniversário da Reforma é importante. Não para cair em um sentimentalismo meloso, muito comum em muitas abordagens que efetivamente têm um olhar idealizado para a Reforma. Estas abordagens são fruto de uma historiografia ingênua, que se limita a glorificar os “heróis” do passado. Devemos ter cuidado para não cairmos nesta tentação.

“Solas”
A Reforma nos traz constantemente desafios. Um olhar, mesmo superficial, do evangelicalismo brasileiro contemporâneo mostra que o lema luterano “Sola Scriptura” – “A Escritura (Bíblia) somente” – precisa urgentemente ser resgatado. O analfabetismo bíblico que impera em muitos meios chamados evangélicos no Brasil atualmente é assustador. Um tanto do que se vê no mundo evangélico brasileiro é tão supersticioso e carregado de tradições não bíblicas quanto o universo religioso do tempo de Lutero. Neste sentido, há que se voltar com urgência não apenas para o “Sola Scriptura”, mas também para as demais bandeiras da Reforma: “Sola gratia” (Só a graça), “Sola Fide” (Só a fé) e “Solus Christus” (Só Cristo).

Comemorar a Reforma é importante, mas não é tudo. Temos que conhecer e valorizar nossa história, mas é necessário mais que isto. Dietrich Bonhoeffer, grande luterano, disse no sermão que pregou na comemoração do Dia da Reforma em 1932:

“No dia do juízo final Deus seguramente não nos perguntará se celebramos dias da Reforma à altura, mas se ouvimos e guardamos sua palavra”1.

Neste 31 de outubro de 2015, vamos lembrar a Reforma do século XVI. De maneira a um só tempo crítica e piedosa. Mas sem esquecer da oportuna advertência feita por Bonhoeffer.
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Nota:
1. Cf. Bonhoeffer, Dietrich. Prédicas e alocuções. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007, p. 49. Este volume, pequena coletânea de sermões e homilias de Bonhoeffer, foi publicado originalmente na Alemanha em 1961.

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