Por Reinaldo Azevedo
NOTA: O título do artigo nesse blog é do editor o título original é: O Politicamente correto é o AI5 da Democracia.
Caros, um post um tanto longo, mas vamos lá. Se eles não se cansam, eu também não me canso.
Se o texto constitucional não vale por aquilo que lá vai explicitado, então tudo é permitido. Vivemos sob a égide do AI-5 da democracia: o politicamente correto. Aquele suspendia todos os direitos, ouvidas certas instâncias da República, que a Carta assegurava. Na sua violência estúpida contra a ordem democrática, tinha ao menos a virtude da sinceridade. O politicamente correto também pode fazer da lei letra morta, mas será sempre em nome, diz-se, da democracia e da justiça.
É uma burrice ou uma vigarice intelectual analisar a decisão de ontem do Supremo segundo o gosto ou opinião pessoal. E daí que eu seja favorável ao casamento gay e mesmo à adoção de crianças por casais “homoafetivos”? Não está em debate se a decisão é “progressista” ou “reacionária”. O fato é que o Supremo não pode recorrer a subterfúgios e linguagem oblíqua para tomar uma decisão contra o que vai explicitado num Artigo 226 da Constituição. O fato é que o Supremo não pode tomar para si uma função que é do legislador. E a Carta diz com todas as letras:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Gilmar Mendes, diga-se, chamou a atenção para esse aspecto legiferante da Corte nesse particular. Será sempre assim? Toda vez que o Supremo acreditar que o Parlamento falhou ou que está pautado por inarredável conservadorismo vai lá e resolve o problema? Que outras falhas as excelências julgam que o Congresso está cometendo? Em que outros casos pretendem legislar? SE, NA DEMOCRACIA, NENHUM PODER É SOBERANO, ENTÃO, ONTEM, O SUPREMO FOI SOBERANO E FRAUDOU A DEMOCRACIA.
Desconheço país (se o leitor souber de algum caso, me diga) que tenha aprovado o casamento gay ou “união homoafetiva” — para usar essa linguagem docemente policiada — por decisão dos togados. Isso é matéria que cabe ao Legislativo. Não no Brasil. Por aqui, os membros da nossa corte suprema consideraram que o legislador estava demorando em cumprir a sua “função”.
Uma das características do politicamente correto, na sociedade da reclamação inventada pelas minorais influentes, consiste justamente na agressão a direitos universais em nome da satisfação de reivindicações particularistas. O que se viu ontem no STF, por 10 a zero, reputo como agressão grave ao princípio da harmonia entre os Poderes. De fato, igualar o casamento gay ao casamento heterossexual não muda em nada o direito dos heterossexuais. Fazê-lo, no entanto, contra o que vai explicitado na Carta agride a constitucionalidade. E, então, sobra pergunta: quando é o próprio Supremo a fazê-lo — e por unanimidade —, apelar a quem?
Vivemos tempos em que a interpretação capciosa — mas para fazer o bem, claro! — da Constituição se sobrepõe ao sentido objetivo das palavras. Sim, é verdade, a Carta tem como cláusula pétrea o princípio de que todos os homens são iguais perante a lei. Mas não é ela mesma a admitir desigualdades em situações específicas? Os indivíduos adquirem maioria civil e penal aos 18 anos — e a suposição é a de que sejam plenamente responsáveis por seus atos. Mas atenção! Nessa idade, ainda estão privados de alguns direitos. Não podem se candidatar a certos cargos públicos. Vejam as idades mínimas necessárias até a data da posse, previstas no Artigo 14:
a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador;
b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal;
c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz;
d) dezoito anos para Vereador.
4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos.
Assim como a lei desiguala os iguais ao estabelecer precondições de elegibilidade, desiguala-os, também, ao reconhecer a união estável, o casamento: ela existe entre “homem e mulher”. O ministro Ricardo Lewandowski torce a verdade, vênia máxima, quando afirma que aquilo está ali só a título de exemplaridade. Não! Nada no texto sugere isso. Não chega a ser nem mesmo uma interpretação. Que especial maturidade tem um homem de 35 anos que não tenha um de 30? Podemos até achar a restrição idiota. Mas está no texto constitucional, assim como está a definição do que é, aos olhos do estado, “união estável”.
Acredito que não haja jurista no país, ainda que no silêncio do claustro, que não tenha confrontado a decisão do Supremo com a Constituição e constatado que, a rigor, a partir de agora, tudo é possível. A propósito: como é que se pode admitir a existência de cotas raciais, por exemplo, se o princípio da igualdade, usado para fraudar o Artigo 226, for aplicado? Nesse caso, a falácia intelectual é de outra natureza: dadas as desigualdades históricas entre negros e brancos, então só se pode praticar a igualdade que o texto prevê praticando a desigualdade benigna, entenderam?
É… Haverá o dia em que João Pedro Stedile descobrirá o caminho do Supremo para abençoar suas invasões porque, afinal, a Constituição prega a “função social” da propriedade. Submetendo o texto constitucional a torções, pode-se até mesmo censurar a imprensa em nome do direito à privacidade. Os bobinhos que ficam soltando foguetes para a decisão de ontem do Supremo não percebem que direitos fundamentais podem estar em risco — se não for com esta composição da corte, pode ser com outra, algum dia. Uma decisão do Supremo que agride a Constituição não é nem progressista nem reacionária: só é perigosa. Mas dizer o quê? Quantos são os nossos jornalistas que leram efetivamente a Constituição?
Argumentações
Separei alguns trechos de votos lidos no Supremo. Vejam o que disse, por exemplo, Lewandowski:
“Com efeito, a ninguém é dado ignorar - ouso dizer - que estão surgindo, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemente, para os fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes.”
Segundo entendi, a família “patriarcal”, “de base patrimonial”, para “fins de procriação”, é a heterossexual. Já a “homoafetiva” é fundada no “afeto” e na “busca da felicidade”. Que eu saiba, Lewandowski não é gay, mas me parece ter sido um tanto heterofóbico… Os gays transam porque amam; os héteros, para fazer neném… Nada de sacanagem, pelo visto, nem num caso nem no outro! A família hétero é de “base patrimonial” (credo! Que cheiro de propriedade privada!). A família gay só quer ser feliz, nem que seja numa cabana. É Dirceu com Dirceu e Marília com Marília na cabana! E muito amor! Tome tento, ministro! Mas atenção para o que ele afirma depois:
“Assim, muito embora o texto constitucional tenha sido taxativo ao dispor que a união estável é aquela formada por pessoas de sexos diversos, tal ressalva não significa que a união homoafetiva pública, continuada e duradoura não possa ser identificada como entidade familiar apta a merecer proteção estatal, diante do rol meramente exemplificativo do art. 226, quando mais não seja em homenagem aos valores e princípios basilares do texto constitucional”.
As palavras fazem sentido, ministro Lewandowski! Ou bem o texto constitucional é “taxativo” ou bem é “exemplificativo”. E ele é taxativo!
Lewandowski foi de uma impressionante pureza neste trecho:
“Cuida-se, enfim, a meu juízo, de uma entidade familiar que, embora não esteja expressamente prevista no art. 226, precisa ter a sua existência reconhecida pelo Direito, tendo em conta a existência de uma lacuna legal que impede que o Estado, exercendo o indeclinável papel de protetor dos grupos minoritários, coloque sob seu amparo as relações afetivas públicas e duradouras que se formam entrepessoas do mesmo sexo.”
Vale dizer: o ministro admite que o casal gay não está abrigado no Artigo 226 e aponta uma lacuna legal. No mundo inteiro, lacunas legais são preenchidas por aqueles que têm a função de preencher lacunas legais: os legisladores. Às cortes, cabe a aplicação da lei.
Para encerrar, e a coisa poderia ir longe, destaco um trecho do voto a ministra Carmen Lúcia, que também reconhece, na prática, o desrespeito ao Artigo 226:
“É exato que o § 3º do art. 226 da Constituição é taxativoao identificar que ‘Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar’. Tanto não pode significar, entretanto, que a união homoafetiva (…) seja, constitucionalmente, intolerável e intolerada, dando azo a que seja, socialmente, alvo de intolerância, abrigada pelo Estado Democrático de Direito. Esse se concebe sob o pálio de Constituição que firma os seus pilares normativos no princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe a tolerância e a convivência harmônica de todos, com integral respeito às livres escolhas das pessoas.”
Assim como homem é homem, mulher é mulher, uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. Há uma definição na Constituição do que é “união estável”, que goza da proteção do estado. E não cabe ao Supremo reescrever o que está lá ou ignorá-lo. A intolerância social é outro departamento — que não se resolve por medida cartorial, especialmente quando um Poder resolve usurpar as prerrogativas de outro.
Alguém até poderia dizer: “Pô, Reinaldo, alguém tem de legislar no Brasil, né? Você, por acaso, acha que o Congresso vai fazer isso?” Pois é.
É isto: o STF agora virou a tenda dos milagres. Façam fila! Em nome da “dignidade” e da “igualdade”, tudo é permitido. Inclusive ignorar a Constituição numa corte constitucional. E isso, meus caros, nada tem a ver com gays ou héteros. Isso tem a ver com os brasileiros, gays e héteros.
Um comentário:
Bem, já que o seu texto advoga uma análise isenta - e não religiosa especificamente - da questão, me permito fazer algumas considerações em cima dos seus argumentos.
1. Sim, existem outros países que aprovaram a união civil de homossexuais pela via judicial. Foram, inclusive, citados no julgamento do STF: Canadá e África do Sul.
2. A via judicial é tão legítima e democrática quanto qualquer outra. A legitimidade do judiciário advém da necessidade de se manter vivo o espírito democrático constitucional, proteger a sociedade dos humores momentâneos que podem pôr em risco valores fundamentais como a liberdade, a independência e a igualdade.
3. Por isso, foi com base no Art. 5 (e não no Art. 226, que o STF deu ganho de causa. Entenderam os 10 juízes (mesmo os mais conservadores), que o valor da igualdade e o da não discriminação, repetido inúmeras vezes por toda Constituição PREVALECE sobre a omissão do Art. 226 sobre a união gay.
4. E por que omissão? Porque ainda que defina claramente a união civil como entre um homem e uma mulher, o artigo NÃO VEDA EXPLICITAMENTE a união entre mulheres e mulheres e entre homens e homens. Sendo assim, como não veda, a interpretação tem que ser a de que não proibe. Não proibindo e explicitamente rejeitando a discriminação, o entendimento foi o de que os homossexuais possuem os mesmos direitos que os heterossexuais EXPLICITADOS naquele artigo.
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