Neste artigo de Vitor Moura Visoni, comentamos um caderno de recortes recentemente descoberto de Chico Xavier com diversas colagens que o suposto médium, em sua juventude, fez reunindo textos de centenas de poetas, nacionais e internacionais. Essa é uma descoberta de grande importância, demonstrando de maneira definitiva que o médium possuía um conhecimento muito superior à sua formação escolar. Conhecimento este que teria possibilitado que escrevesse anos depois sua primeira obra “psicografada”, o livro de poemas Parnaso de Além Túmulo.
- – -
A primeira obra psicografada de Chico Xavier (1910-2002), Parnaso de Além Túmulo, cuja 1ª edição data de 1932, continha então 60 poemas atribuídos a 14 autores brasileiros e portugueses. Com as edições seguintes esses números foram consideravelmente aumentados, alcançando a cifra de 259 poemas de 56 autores brasileiros e portugueses na 6ª edição (1955) e se estabilizando aí. Nesta obra, um marco no meio espírita por ter gerado à sua época de lançamento uma enorme polêmica relacionada à autoria e à qualidade dos textos, nos deparamos logo no prefácio com uma pequena biografia do médium:
O médium polígrafo Xavier é um rapaz de 21 anos, um quase adolescente, nascido ali assim em Pedro Leopoldo, pequeno rincão do Estado de Minas. Filho de pais pobres, não pôde ir além do curso primário dessa pedagogia incipiente e rotineira, que faz do mestre-escola, em tese, um galopim eleitoral e não vai, também em tese, muito além das quatro operações e da leitura corrida, com borrifos de catecismo católico, de contrapeso.
Órfão de mãe aos 5 anos, o pai infenso a literatices e, ao demais, pramido pelo ganha-pão, é bem de ver-se que não teve, que não podia ter o estímulo ambiente, nem uma problemática hereditariedade, nem um, nem dez cireneus que o conduzissem por tortuosos e torturantes labirintos de acesso aos altanados paços do Olimpo para o idílico convívio de Caliope e Polímnia.
Foi aí que nasceu o mito que o Chico era apenas semi-alfabetizado, quase um ignorante. Ele mesmo informa:
Começarei por dizer-lhe que sempre tive o mais pronunciado pendor para a literatura; constantemente, a melhor boa vontade animou-me para o estudo. Mas, estudar como?
Matriculando-me, quando contava oito anos, num grupo escolar, pude chegar até ao fim do curso primário, estudando apenas uma pequena parte do dia e trabalhando numa fábrica de tecidos, das quinze horas às duas da manhã; cheguei quase a adoecer com um regime tão rigoroso; porém, essa situação modificou-se em 1923, quando então consegui um emprego no comércio, com um salário diminuto, onde o serviço dura das sete às vinte horas, mas onde o trabalho é menos rude, prolongando-se esta minha situação até os dias da atualidade.
Nunca pude aprender senão alguns rudimentos de aritmética, história e vernáculo, como o são as lições das escolas primárias. É verdade que, em casa, sempre estudei o que pude, mas meu pai era completamente avesso à minha vocação para as letras e muitas vezes tive o desprazer de ver os meus livros e revistas queimados.
Jamais tive autores prediletos; aprazem-me todas as leituras e mesmo nunca pude estudar estilos dos outros, por diferençar muito pouco essas questões. Também o meio em que tenho vivido foi sempre árido, para mim, neste ponto. Os meus familiares não estimulavam, como verdadeiramente não podem, os meus desejos de estudar, sempre a braços, como eu. com uma vida de múltiplos trabalhos e obrigações e nunca se me ofereceu ocasião de conviver com os intelectuais da minha terra.
O meu ambiente, pois, foi sempre alheio à literatura; ambiente de pobreza, de desconforto, de penosos deveres, sobrecarregado de trabalhos para angariar o pão cotidiano, onde se não pode pensar em letras.
Assim, Chico em seu texto ajuda a perpetuar o mito que ele seria semi-alfabetizado, com pouco estudo. No entanto, uma leitura atenta de suas palavras revela o contrário, no momento em que o próprio informa que sempre teve o maior pendor para literatura e que em casa estudava o quanto podia, tendo várias vezes o desprazer de ver seus livros e cadernos queimados. Isso mostra que, apesar de nascido em uma família pobre, ele tinha acesso a algum material literário, o que é confirmado por ele mesmo em outra fonte, no livroO Evangelho de Chico Xavier, de Carlos A. Baccelli:
Eu sempre quis ter livros… Quando menino, colecionava revistas, gravuras, histórias dos santos da Igreja… Sempre gostei muito de ler, mas nunca pude comprar um livro…
O pendor para a literatura de Chico também é confirmado pelo fato de Chico ter ganhado, ainda no primário, em 1922 (centenário da Independência), um prêmio de menção honrosa no concurso de literatura promovido pela Secretaria de Educação de Minas Gerais. Ele disputou contra milhares de estudantes. Chico concluiria o primário no ano seguinte, após ter repetido a quarta série por problemas de saúde. (Vide As Vidas de Chico Xavier por Marcel Souto Maior).
A autora Magali Oliveira Fernandes conseguiu recuperar, em 1997, um dos cadernos que felizmente não teve o mesmo destino dos demais: as chamas. Esse caderno foi reproduzido tanto quanto possível no livro Chico Xavier: um herói brasileiro no universo da edição popular. Nesse caderno Chico acoplou poemas, aforismos, reportagens, artigos e muitas imagens curiosas, extraídos de impressos originários tanto de periódicos literários requintados como de muitos jornais e folhetos bem mais simples, sem tantos recursos gráficos e editoriais.
Magali informa na página 151 que entre jornalistas, poetas e escritores (nacionais e estrangeiros), Chico reuniu nesse caderno cerca de 200 nomes! Entre as mulheres, podemos citar – dentre muitas outras – a romancista francesa Madame de Staël; a poetisa portuguesa Virgínia Victorino; as brasileiras Cecília Meireles, Gilka Machado, Auta de Souza, Rosalina Coelho Lisboa, Anna Amélia Carneiro de Mendonça, Carmen Cinira e Maria Eugênia Celso. Entre os homens, sobressaíam Olavo Bilac e Raul de Leoni, mas encontrava-se também Shakespeare, Jung, páginas textos de um poeta persa do século XII chamado Mioutchehz, Edgar Allan Poe, trechos de Cervantes, Balzac, versos de Victor Hugo, Catullo Cearense, João de Deus, Álvares de Azevedo, Eça de Queirós, Afonso de Carvalho, Paulo Gama, Vasmir Filho, Gastão Ribas, Higyno Braga, Luiz Delfino, Menotti Del Picchia e vários outros.
Mais que isso, o caderno revela um profundo interesse de Chico pela vida dos autores,chegando ao ponto de encontramos a reprodução das assinaturas de Camillo Castello Branco e Olavo Bilac! Esse interesse em conhecer as assinaturas, em se tratando de alguém que seria mais tarde considerado “o maior médium do Brasil”, é no mínimo suspeito.
Chico Xavier nasceu em 1910, mas neste caderno – datado de 1924, e usado inicialmente para fazer contas e anotar as vendas do bar em que trabalhava à época – encontram-se matérias de 1904, 1909, 1912, 1914, 1920, 1925… isso comprova que Chico tinha acesso a fontes tanto antigas quanto novas, e também que ele sabia muito mais do que aparentava. A forma como ele adquiria tais publicações é desconhecida, mas Magali faz uma sugestão:
Talvez, além de presentear amigos, Chico mostrasse sua coleção de recortes aos colegas, a clientes e visitantes do bar. De vez em quando, até podia ganhar alguma publicação de alguém que se sentisse tocado com aquele interesse do rapaz por literatura e arte, mas o fundamental disso tudo, mesmo sem saber realmente como ocorriam suas aquisições, era pensar a sua atitude de insistir em se manter familiarizado com todas aquelas referências.
Sabe-se, como já dito, que Chico tinha outros cadernos. Em nenhum momento, no caderno recuperado, foram encontradas quaisquer referências às histórias dos santos da Igreja, e essa parte de sua coleção pode ter estado num dos cadernos queimados.
Podemos concluir que Chico Xavier tinha um repertório poético e literário bem superior à sua formação escolar, e que ele tinha todas as condições de reproduzir por meios naturais os estilos dos autores mortos retratados em Parnaso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário