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segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O EVANGELHO SEGUNDO MARILYNNE ROBINSON

Por Helena Vasconcelos

Lila é o quarto romance da escritora americana Marilynne Robinson e o mais recente da trilogia que compreende ainda Gilead (2004) e Home (2008), onde a autora explora a relação de amizade que une profundamente dois pastores evangélicos — John Ames e Jack Boughton — e as suas respectivas famílias, cujos destinos estão intimamente ligados, no ambiente fechado das difíceis relações parentais e filiais, nos desgostos e nas alegrias que acarretam.

A acção, centrada numa pequena cidade imaginária no Noroeste dos Estados Unidos — não muito diferente da terra natal de Robinson —, e as personagens transitam de livro para livro sem ordem cronológica fixa. Na realidade,Lila é uma prequela de Gilead e reencontramos aqui John Ames, que, com toda a sua bonomia e todo o seu amor pela vida, conhece bem a dor da perda: a primeira mulher e a filha morreram há muito e a sua vida solitária, dedicada aos membros da congregação, segue o curso monótono dos dias. Até que, já com 67 anos, é irresistivelmente atraído por Lila, uma jovem que vive sozinha numa cabana em ruínas e, que, tal como ele, é uma “especialista” em solidão e despojamento.
Depois do medo, vencidas as resistências, Lila, que se sabe rude e ignorante mas que quer conhecer o significado das palavras — copia sozinha, e laboriosamente, trechos da Bíblia —, casa com Ames, não sem este a ter antes baptizado. Esse baptismo à beira-rio, com a água a escorrer sobre Lila e um peixe-gato a debater-se, agonizando na erva, ao sol, é uma das cenas mais comoventes do romance, aquela em que o conflito brutal que se desenrola permanentemente na cabeça de Lila parece, temporariamente, apaziguado. A sua permanente desconfiança em relação a uma possível felicidade — isto é, amor, conforto, protecção, companheirismo — é momentaneamente esquecida ao sentir a mão de Ames pousada na sua cabeça, nessa bênção que “queima” e também a faz chorar. A intimidade, pela qual tanto anseia e que rejeita com o mesmo grau de ferocidade, provoca nela um misto de profunda exultação e cruel sofrimento, uma vez que, ao abdicar da solidão, sabe que está a aceitar algo que desconhece. A inquietação de Lila não acaba com o casamento — tem sempre dinheiro guardado para apanhar a camioneta e fugir —, mas a maternidade transforma-a e será a esse filho que Ames escreve, no fim da vida, a longa carta que surge em Gilead.

Há qualquer coisa de ferino e de primordial na personagem de Lila, reminiscente do ideal de Rousseau, cujo mito do “bom selvagem” vai ao encontro da concepção de que o contacto estreito com a natureza funciona como antídoto para uma sociedade em desagregamento. A diferença reside no facto de a “inocência” de Lila ser permanentemente desafiada, tanto pelo seu próprio intelecto como pelo confronto manso, mas determinado, com os outros. A sua luta silenciosa e interior tem a dimensão épica própria das heroínas que vencem as dificuldades de uma infância de abandono e privação, de uma juventude desenraizada e perigosa e de uma idade adulta na qual permanece o rasto de profundos danos emocionais.

Robinson é claramente influenciada por William Faulkner que recorreu profusamente à Bíblia na sua obra, acentuando tanto o seu lado luminoso, redentor e inspirador como os seus aspectos mais sombrios, de castigo e perdição. (Repare-se que Gilead funciona como a Yoknapatawpha de Faulkner, um lugar para onde converge toda a acção.) Lilaé uma obra sobre a redenção e sobre os desertos ou os caminhos de espinhos que é necessário atravessar para alcançar a suprema felicidade, se, por um acaso, ela existir, algures. A autora é incomparável na descrição das maravilhas do mundo imanente — em cada detalhe da matéria, da luz, das texturas, dos movimentos —, enaltecendo a sua insuperável beleza perversamente tingida por um perene sentimento de luto e de perda. Este é pois um romance com uma prosa inspirada e luminosa de cariz profundamente cristão — referências bíblicas (aqui, ao Livro de Ezequiel), luta entre o Bem e o Mal, entre a luz e as trevas, entre a inocência e a corrupção, entre o amor e o ódio, entre a solidão e a pertença — que nos remete claramente para o universo violento e severo da católica Flannery O’Connor, embora Robinson não faça uso da tremenda e incomparável comicidade negra e fulgurante, que caracteriza a obra da escritora sulista.

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