Timóteo recebeu “o dom de Deus”
quando Paulo impôs suas mãos sobre ele. Isso refere-se ao mesmo
incidente mencionado em 1 Timóteo 4.14, onde é dito que um corpo de
presbíteros impôs as mãos sobre Timóteo (em cujo caso Paulo teria sido
um dos presbíteros), ou a um evento separado no qual apenas Paulo impôs
as mãos sobre ele. Não existe nenhuma evidência bíblica para sugerir que
a imposição de mãos, mesmo quando dons espirituais são conferidos, está
reservada para a ordenação formal praticada hoje. Todavia, certo
teólogo iguala o que Paulo descreve aqui com a ordenação formal de
nossas denominações. Então, ele observa que a ordenação não é um
reconhecimento de dons já presentes, mas uma concessão de dons não
possuídos anteriormente. E, adiciona, esse dom é a autoridade para
pregar.Todos os três pontos são errados ou enganosos.
Primeiro, há evidência bíblica
insuficiente para estabelecer a teoria de ordenação afirmada pelas
denominações hoje. De fato, há evidência bíblica insuficiente para
estabelecer as próprias denominações formais. Havia ordem na igreja,
crentes trabalhando juntos em acordo, e conferências de presbíteros para
discutir questões doutrinárias, mas tudo isso não se traduz numa
instituição elaborada governada por concílios regionais e nacionais. Se
um grupo de crentes decide se unir dessa maneira para fornecer apoio e
prestação de contas mútuas como uma questão de vantagem e conveniência
prática, não me oponho a isso. Contudo, seria errado eles desprezarem,
criticarem ou de alguma forma pensar menos de cristãos que agem de
acordo com os princípios bíblicos, mas diferem deles em detalhes não
definidos ou restringidos por princípios bíblicos. Os princípios
bíblicos para o governo da igreja são ricos, claros e inflexíveis, mas
permitem muita liberdade nos detalhes, e simplesmente não requerem uma
estrutura denominacional, ou muitas das teorias e práticas assumidas
hoje. Se você impõe seus próprios princípios de governo eclesiástico
sobre outros quando a Escritura não ensina ou os requer, então você está
seguindo o exemplo dos fariseus, no fato de você alegar proteger a
ordem prescrita da igreja, quando está na verdade protegendo tradições
inventadas por homens.
Segundo, é enganoso dizer que a
ordenação não é um reconhecimento de dons já presentes, mas uma
concessão de dons não possuídos anteriormente. Essa é uma inferência
muito ampla a partir de um versículo limitado e específico. De acordo
com a Bíblia, Deus concede dons espirituais de diferentes formas.
Algumas vezes eles são dados diretamente, sem nenhuma agência humana.
Outras vezes são dados em resposta à oração. Por exemplo, Paulo diz que a
pessoa que fala em línguas deve orar para que possa interpretá-las.
Então, algumas vezes eles são dados por meio de agentes humanos, como
quando os presbíteros e Paulo impuseram suas mãos sobre Timóteo. O que
chamamos ordenação é um reconhecimento público do chamado. O chamado já
existe, quer a igreja o reconheça ou não. Os dons espirituais sempre
seguem o chamado. Eles apoiam o chamado da pessoa, e o capacitam a
cumpri-lo. Mas os dons nem sempre são concedidos através da ordenação,
nem o reconhecimento do chamado pela igreja é sempre necessário. E se
Deus chama alguém para repreender a igreja ou se opor a uma denominação?
Quem o ordenou então? Ou isso nunca acontece? Qual é a evidência
bíblica que torna nossas denominações e seu reconhecimento formal algo necessário?
Não existe nenhum princípio rígido de ordenação na Bíblia. Isso é uma
questão de ordem eclesiástica. Algumas vezes Deus a usa, outras não.
Deus ainda é Deus. Quer a política da nossa igreja permita Deus ser Deus
ou não, ele ainda pode fazer o que quiser.
Teólogos frequentemente afirmam
doutrinas que restringem as práticas corretas àquelas já afirmadas por
suas denominações. Eles começam a partir da Bíblia, então adicionam suas
tradições a ela, e o resultado são as políticas denominacionais, que
eles afirmam ser a pura doutrina escriturística e criticam aqueles que
discordam. Mas o ensino da Bíblia deixa espaço para a soberania de Deus,
muita variedade, e a liberdade para adaptar. Os cristãos poderiam
aceitar a ordem eclesiástica prescrita por suas tradições como uma
questão de conveniência prática, mas uma vez que se torna mais que isso –
uma vez que se torna uma doutrina formal que define o certo e o errado –
eles deveriam se rebelar contra ela. Que ninguém te roube da liberdade
que Cristo comprou para você. Ai da denominação cuja rebelião contra o
evangelho está na ordem e política da igreja.
Terceiro, quanto à autoridade para
pregar, isso pelo menos precisa ser esclarecido. A Bíblia ensina que
todos os cristãos são sacerdotes em Cristo (Apocalipse 1.6). E visto que
todos somos sacerdotes, a implicação irresistível é que todos os
cristãos podem pregar e administrar a ceia e o batismo. A coisa curiosa é
que nem todas as igrejas e denominações que admitem o primeiro (que
todos os crentes são sacerdotes) irão ao mesmo tempo reconhecer o último
(que todos podem pregar e administrar as ordenanças sagradas). Isso
acontece porque as pessoas nessas igrejas e denominações são hipócritas.
Eles dizem o que dizem para distingui-los dos católicos, mas então
praticam a mesma coisa em suas congregações. O Novo Testamento de fato
ensina que deve haver líderes dentro das congregações, e como uma
questão de ordem eclesiástica, eles são geralmente aqueles que pregam e
administram a ceia e o batismo. Isso é para manter a excelência na
atividade da igreja e para impedir o caos e a confusão. Contudo, outros
cristãos não estão impedidos dessas coisas como uma questão de doutrina e
princípio.
Deus é maior que nossas tradições e
nossas denominações. Muitíssimas pessoas dizem que creem nisso, mas
negam em suas doutrinas e práticas. Se Deus quer ordenar a alguém, ele
na verdade não precisa de nenhuma aprovação ou reconhecimento humano.
Ele frequentemente arranja o reconhecimento humano para manter a boa
ordem, mas nada na Escritura indica que isso deva acontecer ou que deva
acontecer de determinada forma. Cristo é o único mediador entre Deus e
os homens. Não devemos permitir algo em nossa política eclesiástica que
pareça negar isso.
Se Deus quer entregar suas palavras ou
suas bênçãos por meio de homens, isso é direito seu. Mas se Deus deseja
entregar essas diretamente, não cabe à igreja proibi-lo. A igreja é uma
comunidade de pessoas individualmente redimidas e chamadas por
Deus. Ele arranja pessoas para crerem no evangelho pelo ministério de
agentes humanos, tal como a pregação de um pastor ou membro de uma
igreja particular. Ele faz isso por inúmeras razões, tais como a ordem
estabelecida, a comunidade e os relacionamentos entre os homens, e para
exercitar e recompensar aqueles que pregam. Mas Deus não precisa de
agentes humanos mesmo quando diz respeito à pregação do evangelho, e não
devemos ressentir ou rejeitar alguém se ele recebe algo da parte de
Deus sem nossa mediação.
Se você teme que isso levaria ao caos,
então isso mostra que você adotou grandemente a mentalidade dos fariseus
e católicos. Essa é a mentalidade que pensa que precisamos usar
tradições humanas para reforçar os preceitos divinos, e isso
removendo-se a liberdade que a revelação divina permite, incluindo a
liberdade que Deus reserva para si. Se alguém se converte à fé cristã ou
possui um ministério à parte do nosso controle, sua fé e ministério
ainda estão sujeitos à palavra de Deus, e podem ser testadas pela
palavra de Deus. E essa é a única base legítima para testar sua
conversão ou chamado ao ministério. Ele não tem nenhuma obrigação de
responder ou se submeter a tradições humanas que não prometeu cumprir. E
se essas tradições violam a palavra de Deus, ele tem obrigação de
romper com elas.
Pode ser verdade que a igreja está em
tempos difíceis. Muitas pessoas estão se afastando das congregações
locais, e as falsas doutrinas abundam. Contudo, a resposta não é uma
teologia de controle por meio de tradições feitas por homens, mas uma
teologia de liberdade em Cristo. Que Cristo atraia o povo que ele
escolheu e chamou! Quanto aos cristãos, eles são responsáveis perante
Cristo, não as tradições humanas. Portanto, desafie-as quando apropriado
e necessário. É frequentemente aceitável se submeter a costumes humanos
em prol do amor e da ordem, mas não porque seja requerido de você como
uma questão de princípio.
Marcos 9 nos diz que um homem estava
expulsando demônios em nome de Jesus, mas os discípulos disseram-lhe
para parar de fazê-lo por não ser um deles. Jesus respondeu: “Não o
impeçam. Ninguém que faça um milagre em meu nome, pode falar mal de mim
logo em seguida, pois quem não é contra nós está a nosso favor”. Quem
ordenou a essa pessoa? Por mãos de quem Deus conferiu dons espirituais a
esse homem? Nem mesmo Jesus na Terra fez isso. Mas Deus no céu o fez, e
aparentemente sem qualquer agência ou aprovação humana. Como observa um
estudioso do Novo Testamento, o próprio Jesus não teve sanção humana
oficial para o seu ministério. As tradições humanas são frequentemente
tão perigosas quanto as ameaças à ordem que elas procuram eliminar. E
eles frequentemente se afastam da ortodoxia que alegam proteger, ao
ponto que até mesmo ordenariam o assassinato do próprio Filho de Deus.
Todos os cristãos devem ser livres para servir a Deus, sob as diretrizes
estritas, mas algumas vezes amplas, da Palavra de Deus, e não das
restrições de tradições humanas.
Fonte: Reflections on Second Timothy
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto, maio/2010
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