Por Franklin FerreiraFonte
Perfil do autor no Facebook
Publicado no Bereianos com permissão.
Em linhas gerais, o texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68)
é bom. O autor, o pastor assembleiano Silas Daniel, acerta ao
distinguir entre o calvinismo (denominado no texto de “compatibilista”) e
o hipercalvinismo (que, suponho, seja o que o autor chama de
“calvinismo fatalista”). E ele também acerta ao tratar o primeiro como
uma interpretação cristã legítima, e o segundo como um erro sério que
precisa ser rejeitado. E sugere algumas boas razões para o ressurgimento
da fé reformada no Brasil (prevalência do pelagianismo em muitos
púlpitos, críticas caricaturais ao calvinismo e a superficialidade
neopentecostal). Ao fim do artigo, o autor fala em tons fortes e
vigorosos da graça salvífica oferecida pela fé em Cristo, de forma
bíblica. Então, o tom irênico do autor é bom e saudável.
Na
tradição batista onde fui criado (fundamentalista e pietista, com
alguma abertura à teologia liberal), o calvinismo ainda é tolamente
tratado por alguns como uma “heresia perniciosa” (para usar as palavras
do autor), muitas vezes assim rotulado ao lado de G12, “guerra
espiritual” e outras esquisitices presentes no cenário evangélico
brasileiro. Então, o tom adotado pelo pastor Silas em seu ensaio é um
avanço importante no debate. E deve-se afirmar claramente, junto com o
autor: o arminianismo não é pelagianismo, apesar desta posição ter
prevalecido e ainda ser a visão religiosa de muitos pregadores e mestres
evangélicos no Brasil, que têm como modelo Charles Finney; mas,
dependendo de que autor se lê (já que uma das poucas confissões de fé
arminianas representativas são os “Artigos da religião”,
revisados por John Wesley), esta tradição pode ser considerada
semipelagiana ou semiagostiniana (mencionados, mas não definidos no
texto).
Posto
isso, o texto tem vários e sérios problemas, no campo da teologia e da
história do pensamento cristão. Sobre o uso da Escritura, os versículos
bíblicos são tratados como textos-prova. Não há sugestão de exegese ou
de estudo léxico das palavras-chave, ou mesmo referências ao lugar das
passagens na teologia bíblica. Isso fica evidente, por exemplo, na
interpretação do autor da expressão “aos que dantes conheceu” (Rm
8.29), reduzida a mera previsão geral divina (ao interpretar 1Pe 1.2).
Também não são indicados comentários bíblicos para suplementar as
pressuposições do autor. Simplesmente presume-se que os ensinos
arminianos são auto-evidentes nos versículos bíblicos citados. Há muito
tempo atrás fui arminiano, e usei muitos daqueles versículos que o autor
citou para “provar” o arminianismo e atacar o calvinismo. Mas, para
cada texto bíblico citado há uma interpretação, por assim dizer,
“calvinista”, que é muito mais coerente e consistente com o texto
bíblico em si, o livro onde este está inserido e o contexto global da
Escritura – e o leitor pode ir aos comentários de Agostinho, Martinho
Lutero e João Calvino, ou aos de D. A. Carson, Douglas Moo, Donald
Guthrie, F. F. Bruce e John Murray, para conferir a exegese das
passagens-chave desta controvérsia.
Pelo
menos, o autor reconhece as várias tensões (e, por que não, as
contradições) presentes na teologia arminiana, como ao tratar da
presciência divina e do alcance da expiação: em outras palavras, o
problema posto é: se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este
precisaria morrer por todos? Ou quando trata do significado da palavra
“mundo”, sem levar em conta o significado da propiciação realizada por
Cristo (ao citar 1Jo 2.2 como texto-prova da expiação geral). E quando
admite algum tipo de predestinação (“sim, ele predetermina muitas
coisas, mas não tudo”) ao mesmo tempo que, ao pressupor que Deus previu
antes de predestinar, não trata de uma pergunta crucial, isto é, quem
criou o que Deus previu?
Também
há vários problemas no campo da teologia histórica. Trato apenas dos
principais. Diferente do que o autor afirma, quase todos os grandes
teólogos medievais criam na predestinação, seguindo em maior ou menor
grau o que Agostinho ensinou no século V: Próspero, Gottschalk, Anselmo,
Bernardo, Bradwardine, Tomás de Kémpis e Tomás de Aquino (cf. S. Th: I,
q. 23, a. 1, a. 2, a. 4, a. 7, a. 8; I-IIae, q. 117, a. 5; II-IIae, q.
174; III, q. 24, a. 1, a. 3). Os pré-reformadores Jan Hus e John
Wycliffe também afirmaram o ensino da predestinação em moldes
agostinianos. Um detalhe que chama a atenção é que ainda que Agostinho
seja citado, sua compreensão sobre a predestinação e a graça não é
oferecida no texto.
O mais surpreendente é quando o autor afirma que Lutero abrandou a posição afirmada em seu tratado “Da vontade cativa”, e que passou a crer na possibilidade de se cair da graça (lendo erroneamente os Artigos de Esmacalde
III.42-45, que, na verdade, refutava distorções anabatistas). Ao tratar
de uma mudança de ênfase na teologia de Lutero, ele cita Herman Bavinck
como fonte, mas não mencionou que este autor também afirmou que Lutero
“nunca reverteu sua posição sobre predestinação”, e que os “verdadeiros
luteranos” rejeitaram o sinergismo de Filipe Melanchthon (“Teologia Sistemática”, v. 2, p. 364).
Obviamente,
há diferenças significativas entre os teólogos cristãos, e mesmo entre
teólogos da tradição reformada. Por isso, um bom ponto de partida para
tratar de temas teológicos controversos é começar com o que afirmam as
confissões de fé que resumem as posições das tradições professadas, e
não com as posições de teólogos, por mais importantes que estes sejam
(por exemplo, nem todos os teólogos reformados ficam satisfeitos com a
afirmação da CFW VI.1, de que Deus determinou permitir o primeiro
pecado, mas esta confissão, e não a opinião dos teólogos, representa a
posição reformada/puritana).
Sobre
a participação dos arminianos no Sínodo de Dort – que talvez seja o
mais importante concílio protestante já ocorrido – é necessário deixar
claro que estes não foram vítimas inocentes do poder do Estado ou dos
calvinistas, como o autor parece opinar. Como John de Witt afirmou: “Os
arminianos (...) utilizaram de toda engenhosidade para evitarem qualquer
declaração [clara de seus ensinamentos] (...), exigiram que fosse
seguida sua própria pauta de assuntos em lugar da do Sínodo, praticaram
evasivas táticas de retardamento e obstruções (...) e rejeitaram a
autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato de ser
legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual
confessavam pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se
submeter em virtude de suas ordenanças e votos!” (cf. O Sínodo de Dort, em Jornal Os Puritanos [Ano 3 nº 2, Março/Abril 1995], p. 27-30)
E, como o pastor Silas reconhece, “os seguidores de Arminius na Holanda
acabaram, com o passar do tempo, se afastando progressivamente do
pensamento original de seu mentor”, rejeitando doutrinas como o pecado
original, a expiação substitutiva e penal e até mesmo a divindade de
Cristo, tornando-se, como nota o autor corretamente, “liberais em
teologia”.
Quando
trata da controvérsia arminiana do século XVIII, o autor (apoiando-se
em uma única fonte secundária) poderia ter colocado toda a polêmica em
contexto, o que seria muito instrutivo para nós, hoje. Em meados de
1740, houve um confronto entre Wesley e George Whitefield; o primeiro
supunha, erroneamente, que a doutrina da predestinação poderia conduzir
ao antinominianismo. Mas a leitura dos escritos puritanos, por parte de
Wesley, conduziu-o a uma reavaliação desta posição e, com isso,
alcançou-se um acordo entre ambos os lados, o que permitiu uma
cooperação na pregação do evangelho, já que nos temas centrais (pecado
original, justificação pela fé e santificação) havia acordo. Mas a
contenda reiniciou-se em meados de 1770, por causa não da doutrina da
predestinação, mas do ensino da justificação – o suíço John Fletcher
(Jean de la Fléchère), colega de John Wesley, começou a negar a doutrina
da imputação da justiça de Cristo ao fiel. Em síntese, ele afirmou que a
justificação requereria santificação pessoal e não a fé somente (cf. “Fourth Check to Antinomianism”).
Nesta altura, Wesley vacilou na defesa desta doutrina importantíssima
para a fé evangélica. O contundente texto de Augustus Toplady, “Arminianismo: o caminho para Roma”,
foi escrito nesta época – e em resposta a uma distorção da doutrina
bíblica da justificação pela graça, recebida mediante a fé somente, com
todas as implicações doutrinais e devocionais daí decorrentes. Richard
Watson, talvez o mais habilidoso teólogo metodista, escreveu no século
XIX, sobre Fletcher: “Embora muito admirado entre os wesleyanos, suas
doutrinas não são admitidas como norma” (cf. Iain H. Murray, “Wesley and Men Who Followed”).
E, diferente da perspectiva do autor, de que “o arminianismo ergueu-se
vitorioso” da controvérsia, os metodistas arminianos saíram da igreja
episcopal, que, na época, ainda era majoritariamente calvinista, para
fundar um dos ramos do metodismo, e do qual se originou os movimentos de
santidade (o outro ramo, seguidor do calvinismo, era o metodismo galês,
e se tornou presbiteriano, e não congregacional, como afirmou o
autor).
O
estudo da história do pensamento cristão é muito importante. Mas, no
fim, o que irá decidir toda discussão no âmbito da fé é a Escritura, que
é “o juiz supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de
ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de
concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas
de homens e opiniões particulares, o juiz supremo, em cuja sentença nos
devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na
Escritura” (CFW I.10). Portanto, o que conta é o que a Escritura ensina.
Que ela seja estudada por meio de “exegese, exegese e mais exegese”,
sempre em dependência do Espírito Santo. Pois devemos nos apegar somente
e fielmente à Palavra de Deus, revelada nas Escrituras somente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário